Apenas mais uma de Natal

natal

O ano era o de 1989, uma família de migrantes em busca de vida nova em terras distantes, o dinheiro pouco ou quase nada, os sonhos muitos e dificuldades mais ainda. A começar pelo sol escaldante do centro-oeste que assustava a jovem, porém grande família que acabara de largar o gélido sul do Rio Grande para o escaldante cerrado central em pleno verão. Sim, histórias de Natal Tupiniquins não têm aquele charme nova-iorquino de noites com neve, todos aquecidos ao pé da lareira.

Naquele tempo eram seis. Os pais, três meninos ainda na primeira infância e uma recém chegada ao mundo. Moravam em uma pequena casinha alugada e o dinheiro que entrava, quando entrava, vinha da venda de livretos de poesia, ofertados de porta em porta, de sol a sol. E que sol, diga-se de passagem. A este ponto, caríssimo leitor, já deve ter percebido que os tais sonhos não deram lá muito certo logo de início. O dinheiro trazido para iniciar um empreendimento na terra do futuro rapidamente se foi e o que ficou foi o fardo da sobrevivência, de começar literalmente do zero.

Logo chegaria o Natal, aquela data alegre, de trocar presentes e que todos gostam, ou ao menos todos gostariam sequer de poder gostar. É duro imaginar o que se passou na cabeça daqueles pais em tal ponto de suas vidas. Quatro crianças pra sustentar, uma despensa tão vazia quanto seus bolsos, muita vontade de poder dar aos filhos aquele brinquedo da propaganda e o tal Natal dobrando à esquina. E agora?

Se a vida fosse um livro este capítulo seria chamado de “O filho do seu menino” em homenagem ao inspirado poema do Jair Rodrigues que diz assim: “Eita, na virada do tempo, um pai tira versos de amor. A vida pode ser dura mas tem momentos de alegria, que há poesia batendo a porta do sonhador”. E aqui começa a história de Natal.

Para começar precisavam ao menos de uma árvore de natal, certo? Iniciou-se então uma animada gincana em busca da árvore. Saíram todos procurando o melhor galho que pudesse ser encontrado nas imediações do bairro e depois de algumas tentativas frustradas uma das crianças encontrou o galho ideal. Não passava de um galho seco, é fato, mas através dele era possível ver um frondoso pinheiro. Uma vez encontrada a peça ideal começou a cuidadosa tarefa de enfeitá-la. Pipoca e algodão colados aos galhos transformavam-se em neve, massa de modelar caseira transformava-se em enfeites e alguns laços complementavam os adornos. Pronto, do nada surgiu uma bela árvore de natal. Sua beleza não estava em sua imponência, seu brilho ou seu charme, mas sim no que significava para todos. Estavam felizes, apesar de tudo.

É chegado o dia. Brincadeiras, festa e ceia, como todo bom Natal. Até que chega também a hora dos presentes e com ela a primeira surpresa. Cada um ganhou apenas um pequeno quebra-cabeça, desses que se monta arrastando as pecinhas com o dedo até formar um desenho dentro de uma moldura de plástico. Apesar de ter ficado claro que aquilo era pouco, não houve choro nem reclamações. Um pacto velado de conformidade selou-se silenciosamente. Logo se finda a festa e em poucos minutos já estavam todos tentando dormir em um misto de tristeza por não ter um presente melhor e alegria por ao menos ter alguma coisa… Um pequeno quebra-cabeça, carinhosamente colocado ao lado do travesseiro.

Eis que se acendem as luzes, forçando todos a ir para a sala ver o que estava acontecendo e para grande surpresa e felicidade, a árvore estava lá, com alguns presentes coloridos cuidadosamente dispostos sob seus galhos enfeitados de algodão e pipoca. Não tinha o vídeo-game do ano, nem nada eletrônico, apenas presentes quase tão baratos quanto os quebra-cabeças que os precederam, mas a surpresa fez deles os melhores presentes de natal que se poderia imaginar, afinal, quando não se espera nada o pouco se torna muito. A festa então recomeçou e durou toda a noite, aquela tristeza desapareceu e este se tornou o Natal mais feliz da história daquelas crianças, que mesmo sem ter nada tiveram tudo.

A poesia não estava presente apenas nos livretos, mas também na arte de transformar nada em tudo, sendo o amor o grande e único agente capaz de fazer tal alquimia.

Gê Bender

Programador por ofício desde 1999, hoje é diretor da Mais Empresas - Tecnologia da Informação, empresa estabelecida no mercado há aproximadamente 10 anos. Entusiasta dos métodos ágeis para desenvolvimento de software e das técnicas de Lean Startup para o empreendedorismo digital.

3 comments

  1. Seminha   •  

    Lindo Gê. Belas palavras escritas com um sentimento incrível!

  2. Ismael Bender   •  

    Querido Mano – Grato por compartilhar estas tão ricas memórias que também as tenho acesas dentro de mim. De uma época em que apesar de todo sofrimento, só tenho boas lembranças de nossa infância. Abraços – E Feliz Natal.

  3. Laura Montania   •  

    Oi, Gê, gostei, é legal porque ao ler sua história inevitavelmente lembro das minhas histórias de natal.Parabéns!

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